Sendo RPGista por mais ou menos uns vinte anos, já li e ouvi centenas de vezes críticas duras de jogadores e mestres sobre como nós, brasileiros, valorizamos conceitos “americanos” ou “europeus” em RPG, em detrimento das coisas daqui. Essas críticas se referem a todos os níveis do RPG, desde os cenários às regras.
Como exercício criativo, mais de uma vez procurei usar, em cenários de RPG que imaginei, conceitos inspirados no Brasil e arredores. Decidi dividir minhas ideias com vocês, sobre como achar e aplicar um pouco de sangue latino especificamente em fantasia medieval (um dos grandes “vilões” nesse debate).
Primeiro uma confissão: esse assunto não me tira o sono. O desafio em si me intriga mais por ser repetido ao longo dos anos do que por me preocupar realmente; dou algumas razões abaixo:
- Acho que cada um faz o que quer. Se uma pessoa gosta de cenários medievais bem europeus, o problema é dela, não tem nada de errado nisso.
- Não acho que consumimos tanto “americanismo” quanto fazem parecer. Existe uma ilusão de que toda fantasia medieval só tem elementos de cultura europeia, e isso nem sempre é verdade.
Não quero me alongar nessa parte, então aqui vão algumas ideias que usei em um cenário de fantasia medieval com alguns elementos inspirados em coisas do Brasil e cercanias.
(Para quem quer se aprofundar no debate do pouco uso elementos nacionais em RPG, aqui tem um texto interessante.)
Idioma
Muitos acham que o português não soa “medieval” ou “fantástico” o suficiente, e que por isso acabamos usando em RPG nomes de lugares e pessoas que soam como inglês ou como “élfico” (aquele élfico que o tio Tolkien nos ensinou). Fique sabendo que o americano também às vezes se pergunta porque a fantasia medieval em inglês tem sotaque britânico. Isso é uma espécie de truque de imersão. Usar idiomas ou palavras que soam exóticas ajudam na imersão em um cenário fantástico. Por isso, usar o idioma “normal” que usamos no dia-a-dia não soa fantástico o suficiente.
Se os americanos usam sotaque e palavras do inglês britânico, eu poderia usar palavras de português de Portugal? Pra mim isso simplesmente não resolveu o problema. Procurei então na internet textos em português medieval, mas achei que isso também não dava o efeito desejado (pra mim, português medieval parece um português moderno escrito errado). Aí lembrei que o português é derivado do latim. O latim é perfeito para cenários de fantasia à brasileira: soa exótico o suficiente, tem algumas palavras familiares e outras totalmente estranhas, com um link óbvio com o português. E até um falante de inglês “sacaria” o efeito “fantástico” do latim, então se for exportar meu cenário um dia (quem dera), o idioma não precisará de adaptação.
Não sei latim, mas tenho um dicionário, e até na internet é possível achar traduções. Acabei usando palavras em latim (ou que soam latinas) para nomes de lugares e todas divindades do cenário. Algumas palavras latinas também podem virar nomes próprios e nomes de famílias. Nomes latinos também ajudam a dar um estilo mais fantástico aos personagens. Latim é como se fosse o idioma “antigo” dos humanos do cenário, que hoje falam variações do latim (às vezes parecido com português, às vezes com outros idiomas latinos, às vezes totalmente diferentes).
Problema resolvido, 1 a 0 pra mim.
Culturas
Outro “choro” comum é o das culturas dos povos de fantasia serem sempre inspiradas em europeus. As pessoas não identificam nada de brasileiro em uma cavalaria pesada medieval, magos, castelos, feudalismo, etc. Talvez também achem que por isso o Brasil destoa muito da fantasia medieval tradicional. Mas será que não tem como aproveitarmos alguns elementos culturais e étnicos daqui em fantasia medieval?
No meu cenário de fantasia medieval, imaginei regiões/países com culturas bem diferentes umas das outras. Um destes povos é inspirado na cultura do interior do sul do Brasil-Império. No mundo real, os gauchos (se diz “GAU-tchos”) se espalharam pelos campos da Argentina, Uruguai e sul do Brasil com um estilo de vida pastoril bastante rústico, com trajes e alimentação característica. No meu cenário, então, coloquei um povo que vive ao ar livre, ama cavalos, prefere lutar com lanças e sabres, bebe um chá amargo chamado mate, e se veste com pesadas lãs e couros, ponchos, botas, chapéus, lenços com cores que indicam sua linhagem e as características bombachas, e com um apego teimoso a tradições antigas. Seus costumes belicosos ditam, entre outras coisas, que uma ofensa à honra só se limpa com sangue, por isso se criou uma cultura de duelos de honra. Duelos são tecnicamente ilegais, por isso, os envolvidos se reúnem, se despedem de suas famílias, depois lutam em um local reservado para que não haja testemunhas oculares (assim o duelista sobrevivente não é preso e enforcado).
Uma outra região do cenário foi povoada por humanos inspirados em indígenas latinos. Cada tribo da região tem uma fortaleza característica, semelhante a construções de Machu Picchu, Ilha de Páscoa, Missões Jesuíticas, etc. Esses povos são extremamente supersticiosos, e respeitam líderes espirituais que comandam poderes mágicos espetaculares através de rituais grandiosos, que também podem ser sinistros ou sangrentos. Eles têm uma tradição científica bastante única: através da observação da natureza, aprenderam a prever o clima, os movimentos dos astros (e, assim, a vontade dos próprios deuses) e até eventos globais como guerras e pestes. Também possuem códigos de leis complexos que fazem com que as fortalezas sejam perigosas para a maioria dos forasteiros incautos. Apesar destes avanços, os povos são relativamente primitivos militarmente: eles não se interessam por armas de aço, e lutam com um estilo ofensivo que pode ser temerário.
Esses são só dois pequenos exemplos. Poderia haver um povo baseado em conquistadores portugueses, expansionistas com uma tradição marítima superior e navios de guerra incríveis. Poderia haver um sertão árido com uma riqueza de líderes carismáticos de bandos de guerrilheiros. Poderia haver um povo semelhante a mouros como os que dominaram a Península Ibérica (dos quais muitos somos descendentes sem nem termos ideia).
Outros aspectos de nossa cultura podem ser aproveitados em cenários fantásticos. A capoeira pode inspirar estilos marciais fantásticos de luta desarmada. O catolicismo pode inspirar religiões monoteístas com enormes templos e fervorosos guerreiros cruzados. Se você acompanhou obras de ficção como as séries A Muralha e Liberdade, Liberdade, pode usar Vila de São Paulo e Vila Rica como pano de fundo para duas cidades medievais, com todos os personagens e pontos de interesse já prontos. Nossas forças armadas podem emprestar os nomes de patentes para militares da fantasia. Fortes militares brasileiros, como o Forte do Castelo de Belém ou o Forte do Morro do Pico de Niterói, podem servir como planta baixa para fortalezas de fantasia (é fácil ver a forma das construções no Google Maps ou Earth). Por pior que possa parecer, até nossa política pode ser usada em um país imaginado, com um parlamento orgulhoso e cheio de intriga, ou um reino em situação de ditadura militar inspirada nos nossos anos de chumbo.
Já são 2 a 0 pra mim, é do Brasil-sil-sil.
Criaturas
Aqui chegamos em um ponto que eu adoro nas críticas aos cenários fantásticos “antibrasileiros”. Alguns têm a opinião de que criaturas do nosso folclore não são usadas em cenários fantásticos por preconceito. Sério, adoro.
Vamos combinar uma coisa. RPG de fantasia existe pra gente testar nossos personagens em combates contra antagonistas que muitas vezes são criaturas não-humanas. Então será que os antagonistas poderiam ser criaturas não-humanas do nosso folclore? Bem, eu não gostaria de testar a Bola de Fogo do meu feiticeiro contra uma pobre criança negra fumante com uma perna faltando (sem dúvida efeito colateral de ser um fumante inveterado, pelo menos de acordo com o Ministério da Saúde). Eu também não me sentiria ameaçado por um jacaré bípede de peruca, que chega dizendo “a Cuca vai te pegar” com uma voz de velha.
Isso significa que não adianta só meter qualquer criatura do nosso folclore em uma campanha e esperar que funcione. Há dois problemas básicos, na minha opinião. Primeiro, muitas de nossas lendas mais famosas têm temática infantil (não adianta os especialistas me ligarem para dizer que “na verdade não”, o povo usa essas lendas para assustar crianças, e é isso que fica marcado). Segundo, os nomes das lendas às vezes destoam da linguagem usada em cenários de fantasia (lembrem o que eu falei sobre nomes exóticos, isso ajuda na imersão). Quer dizer que cada coisa que formos usar do folclore brasileiro precisa ser adaptado.
Quando você pensa um cenário de ficção ou jogo, você não coloca dragões porque precisa colocar dragões, você coloca se fizer algum sentido. E se a palavra dragão não combinar com o cenário, você vai chamar de outra coisa também. Ninguém vai se ofender se você chamar dragões de dracos no seu cenário, ou reclamar que você não está respeitando o folclore europeu/asiático/mundial de onde os dragões foram baseados.
Agora imagine a Mula-Sem-Cabeça. No meu cenário de fantasia, eu queria que generais dos planos inferiores fossem conduzidos por montarias sinistras. Eu considero a mula um animal meio cômico, por isso não combina com a atmosfera séria que eu precisava. Eu então desenho um equino gigante, preto, com fogo e lava saindo pelo pescoço, e cascos incandescentes. De mula não tem nada, então preciso de um novo nome pro bicho. Lembram que eu usei o latim para minhas necessidades idiomáticas? Peguei o dicionário e descobri que “escuridão” em latim pode ser tenebrae. A criatura é mesmo tenebrosa, gostei. Sempre que eu descrevo os tenebrae, me dizem “hmm, é tipo uma mula-sem-cabeça” (guardadas as proporções e o dano massivo de diferença). Quer dizer, a referência não se perde.
Vou dar um outro exemplo. No cenário tem uma mata tropical que é imensa, caberia um país inteiro dentro (outra referência ao Brasil). A mata tem seus perigos, mas tem uma certa região que os nativos evitam a todo custo. Se os nativos odeiam um viajante que não conhece a região, orientam que o viajante vá para a região que eles evitam. O viajante entra e não volta. Parece digno de uma aventura de RPG? Aquela região é habitada por uma raça estranha de quase-humanoides negros com pele como cascas de árvore, dedos como folhas e uma única perna. Eles se equilibram perfeitamente naquela perna; a bem de verdade, quando estão parados, é como se estivessem enraizados. Eles se movem silenciosamente pela mata, e vão mudando de lugar. Quando um viajante olha pra uma criatura dessas parada, tem certeza que é uma árvore comum. Mas o viajante se vira e a árvore não está mais lá. Para onde foi? Em pouco tempo o viajante perde o caminho e ninguém mais o encontra. Eu não precisei nem dar nome a essas criaturas (e “Saci” é outro nome que acabaria destoando no cenário). É como se essas criaturas não existissem, ninguém sabe como as árvores se movem.
Além de lendas folclóricas, também dá pra usar todo tipo de criatura exótica da nossa natureza em cenários de fantasia medieval, basta saber encaixar e adaptar. Inspirado na sucuri, pode-se criar uma cobra tão enorme que gera uma lenda própria (uma serpente usada por uma divindade como laço para caçar seus desafetos, ou uma cobra tão comprida cujo começo e fim ninguém conhece, etc.). Inspirado na arara, pode-se imaginar uma raça de humanoides-ave com penas multicoloridas e bicos curvos. Inspirado na onça, pode-se imaginar belos felinos de guerra para aquele povo indígena que eu descrevi antes, chamados apenas de pintados.
Já tá 3 a 0 pra mim. Virou passeio.
E o que mais?
Fantasia medieval é só um gênero; fala-se no “problema” de não usarmos elementos nacionais em muitos outros tipos de história. Eu já criei um cenário pós-apocalíptico centrado no Brasil e arredores, funciona super bem: as pessoas reconhecem o cenário, mesmo distorcido pela devastação apocalíptica. Em outro exemplo, você pode achar cansativo o tema da nossa degradação política, mas quem gosta de histórias de crime, intriga e conspiração não pode negar que não falta assunto pra jogos políticos realistas no Brasil atual, combinando elementos de House of Cards, Game of Thrones, Tropa de Elite…
E digo de novo: não precisa usar elementos nacionais. Use se quiser e gostar. Só tenha a mente aberta e lembre que não é nada difícil.
Bons jogos para você!
Mula-Sem-Cabeça por Daniel Wernëck, publicado sob licença Creative Commons-Atribuição-CompartilhaIgual 2.0. Arte editada: proporção, corte.
Peixolas, Cavalóides, Centopatas, Meio-Tempos, são alguns dos monstros que lembro bem das aventuras do Sergio Deboni. Monstros terríveis que habitavam as proximidades de Nova Encruzilha.
Muito bom esse relato e agradeço a citação do Tiago. Nova Encruzilha é como o Rio de Janeiro é retratado no Velozes e Furiosos, você anda uns dois quilômetros e está no deserto.
Essa choradeira de jogos/cenários nacionais já rendeu diversos rpgs de caráter duvidoso, mas acho que o que importa (e é o que o Rafael diz) é termos criatividade pra utilizar as coisas boas que fazem parte de nossa cultura e (por que não?) misturar com elementos da cultura global.
Esses são bons exemplos. Embora o Sergio não se inspirasse necessariamente em elementos brasileiros (nem europeus, nem africanos, nem de outro mundo, eram só da cabeça dele mesmo), ele entortou o idioma português de um jeito que conseguia dar nomes exóticos a criaturas fantásticas sem sair do português. Essa é outra maneira de aproximar a fantasia de um elemento nacional, que exige muita criatividade.
Isso me lembra a tradução do Witcher 3 para o português que, como o Tiago me mostrou, tem também nomes inventados que soam brasileiros (fetulho, púero, dama da peste).